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Era dia
na Fazenda Santa Helena. Com a espingarda em punho, Eduardo Ribeiro – um jovem
alto e branco, de cabelos castanhos, por volta dos trinta anos – pulou a cerca
da propriedade e seguiu correndo velozmente em direção ao casarão, que se
encontrava lá adiante. Suas roupas estavam sujas e amarrotadas. Seu semblante
era de desespero. Quando Eduardo finalmente invadiu correndo a sala do casarão,
Dalva – uma senhora morena e forte, por volta dos cinquenta anos, que usava um
vestido de alças - se assustou e deixou o pequeno vaso de plantas que segurava
cair no chão. Súbito, uma voz feminina gritou. Um rugido de onça ecoou. O rapaz
subiu a escada apressadamente até o segundo andar, onde deu um ponta-pé na
porta de um dos quartos, no qual entrou, mirou e atirou. Eduardo abaixou a
espingarda e a soltou no chão. Pôs-se de joelhos e, chorando, lamentou:
- Me perdoe! Me perdoe, Marília! Me
perdoe!
Uma poça de sangue aproximava-se de
Eduardo.
- Eu,
que sempre fui um homem racional, arrisquei tudo por causa dela, dela e da
minha vaidade. Isso foi há um ano, mas tudo continua tão vivo em minha mente como
se tivesse acontecido ontem.
Um ano antes...
Era final de tarde. Um avião vindo do
Rio de Janeiro aterrissava na pista do Aeroporto Internacional de Corumbá, em
Mato Grosso do Sul. No desembarque, dentre os passageiros, surgia Eduardo
Ribeiro – já descrito no início de nossa trama -, que era recebido por sua
noiva Marília Gonçalves de Alencar – uma bela jovem, alta e branca, de longos
cabelos negros e olhos azuis, tinha por volta dos trinta anos e vestia-se
elegantemente. Ambos se abraçaram e se beijaram calorosamente.
- Saudades, Marília?! – perguntou
Eduardo.
- O que você acha, Edu?! – respondeu a
moça - Fez boa viagem?
- Foi ótima! Mas a recepção aqui em
Corumbá foi bem melhor.
Caro leitor, antes de prosseguirmos com a
nossa historia, permita-me fazer uma breve descrição de Corumbá.
Localizada a mais de 400 quilômetros da capital do
estado de Mato Grosso do Sul*, Campo Grande, a cidade, que se
desenvolveu as
margens do Rio Paraguai, já contabiliza uma população de mais de 100.000 mil
habitantes.
Fundada em 1778, foi chamada, em suas primeiras denominações, de
Arraial de Nossa Senhora da Conceição de Albuquerque e de Freguesia de Santa
Cruz de Corumbá.
Sua ocupação teve início, ainda no Século XVI, quando os
portugueses tencionavam encontrar ouro na região. Posteriormente, com o intuito de
defender as terras das invasões espanholas, fixaram-se pontos militares,
estabelecendo-se o domínio português.
Na segunda metade do Século XIX, a região foi ocupada e destruída,
em virtude da Guerra do Paraguai, como consequência a navegação pelo Rio
Paraguai foi interrompida, desestruturando assim o comércio. Finda a guerra, a cidade foi reconstruída e a navegação
restabelecida, ocasião em que começaram a chegar imigrantes latino-americanos e
europeus, alavancando o desenvolvimento da cidade.
Devido a sua
localização fronteiriça, a única forma de comunicação da região era através dos
rios, motivo pelo qual, até a década de 50 do século passado, a cidade era
influenciada pelos países da Bacia do Prata, herdando seus costumes, linguagem
e música.
No início do Século XX, com a construção da Estrada de Ferro
Noroeste do Brasil, o transporte fluvial ficou em segundo plano, logo o comércio deslocou-se do sul do, até então, estado de Mato
Grosso para Campo Grande. Por conseguinte, Corumbá voltou-se para a mineração e
as atividades rurais. Nos dias de hoje, dedica-se também ao turismo.
Na década de 40, a cidade iniciou suas
atividades industriais, explorando
principalmente o calcário e outras riquezas minerais.
No final dos anos
70, iniciou-se a exploração da atividade turística, o que viabilizou a
restauração das construções antigas pelos empresários desse segmento. O turismo firmou-se
nos anos 80, mudando de vez a economia da cidade, gerando uma infra-estrutura
para atender melhor os seus visitantes.
Embora o ecoturismo
ainda não tenha alcançado o seu potencial máximo, vale ressaltar que é no Rio
Paraguai onde encontramos as regiões mais procuradas para o turismo no
Pantanal.
Basicamente, a
pecuária do gado de corte é a única atividade exercida nas fazendas, enquanto
que no centro urbano, o mercado de trabalho é voltado para a prestação de
serviços e o comércio.
Tombados em 1992,
os casarões e sobrados, construídos numa época próspera, revelam a beleza da
influência do estilo europeu em Corumbá. Os prédios que compõem sua paisagem
estão dispostos nas ditas partes alta e baixa.
Atualmente, sua
arquitetura é um misto do antigo e do novo, com modernas edificações emergindo
na cidade.
Falar de Corumbá é
falar do Pantanal.
Sendo a maior
planície alagável do planeta, o Pantanal avança por terras brasileiras,
paraguaias e bolivianas. No Brasil, abrange os estados de Mato Grosso e Mato
Grosso do Sul, sobretudo a cidade de Corumbá.
Esse paraíso
ecológico destaca-se por apresentar uma grande diversidade de espécies de fauna
e flora.
Uma característica peculiar do Pantanal é seu
ciclo de cheias e secas. De modo geral, a região apresenta períodos mais
chuvosos de novembro a abril e de maior estiagem de maio a outubro. O verão
caracteriza-se por ser bastante quente, enquanto que o inverno pode ser muito
frio.
Chamada de “Cidade Branca” - pelo fato de sua
terra ser rica em calcário, conferindo-lhe uma cor clara -, considerada pelos
corumbaenses como “Capital do Pantanal” - em virtude deste paraíso ecológico
ocupar, em grande parte, o seu território -, a cidade de Corumbá será o palco
da nossa história...
Retornando do aeroporto, a caminhonete
vermelha de Marília seguia pela estrada de terra em meio às propriedades
rurais. Ela estava ao volante, e Eduardo, no banco do carona.
- E como você ficou essa semana, Edu?
Alguma evolução? – perguntou a moça.
- Nada, Marília. Nada. Parece que vou
continuar no atendimento ambulatorial por um bom tempo. – respondeu desanimado.
- Você fez o que pode, Edu. Aliás, nós
fizemos. – tentou confortá-lo.
- Eu sei, Marília. Eu sei.
Eram médicos num renomado hospital do
Rio de Janeiro. Ela corumbaense de nascença, mas carioca de coração, fora
cursar medicina na Universidade Federal do Rio de Janeiro e, depois de formada,
acabou se estabelecendo por lá. Ele, carioca da gema e oriundo de uma família
de classe média alta da Zona Sul, cursara medicina na mesma universidade que
Marília. E, embora colegas de curso, não tiveram nenhum envolvimento, pois a
moça já se encontrava enamorada por outro e, ao que parecia, iria dar em
casamento. Perderam contato depois de formados, reencontrando-se tempos depois,
quando foram trabalhar juntos no mesmo hospital. Na ocasião, ambos estavam
livres e puderam dar início a um relacionamento, que evoluíra para noivado há
alguns meses. E já estavam com o casamento marcado para daqui a um ano.
Eduardo, sempre exigente consigo mesmo,
era um cirurgião de destaque e respeitado pelos colegas; mas, infelizmente,
depois daquele trágico dia em que perdera, pela primeira vez, uma paciente,
naquela emergência de hospital, sua vida ficou marcada para sempre. Considerou
aquela perda uma derrota e fazia seis meses que não conseguia realizar um
procedimento cirúrgico.
Por fim, a caminhonete vermelha de
Marília atravessou uma grande porteira com a placa contendo a inscrição
“FAZENDA SANTA HELENA, SEJA BEM-VINDO!”, seguiu propriedade adentro, parando em
frente ao casarão em estilo colonial, que era a morada dos Gonçalves de Alencar
– uma tradicional e respeitada família corumbaense. Lá, os aguardavam os pais
da moça e três empregados. Marília e Eduardo desceram do veículo e subiram o
pequeno lance de degraus até a varanda; foram recebidos por Francisco Gonçalves
de Alencar – um senhor de estatura mediana, branco, forte, de bigode, por volta
dos sessenta anos, que usava aquele típico chapéu de fazendeiro – e sua esposa
Ângela Gonçalves de Alencar – uma bela senhora, alta e branca, de olhos azuis,
por volta dos cinquenta e igualmente elegante como a filha; Dalva – já descrita
no início - e sua filha Ritinha – uma bela moreninha, de cabelos negros, por
volta dos vinte anos, que trajava um vestidinho de alcinhas; e Toninho – um
moreno, magro, por volta dos trinta, que usava roupas e chapéu surrados.
- Ora, ora! Até que em fim! – exclamou
Francisco.
- Pensávamos que não viria mais,
Eduardo. – disse Ângela.
- Seu Francisco! Dona Ângela! Como
estão?
Cumprimentaram-se. Marília acrescentou:
- Ele não faria uma maldade dessas
comigo, mamãe.
- Como foi de viagem, meu rapaz? E como
anda a cidade maravilhosa? – perguntou o sogro.
- Fui bem, Seu Francisco. Obrigado! E o
Rio continua agitado como sempre.
- Certo, certo. – e volvendo para a
filha - Sabe, Eduardo, alguém aqui não se aguentava mais de saudade.
- E quem seria essa pessoa? – brincou o
médico.
Todos riram. Naquele instante, Ângela
apontou para os três empregados.
- Eduardo, estas são Dalva e a filha
Ritinha, nossa afilhada.
- Tudo bem? – disse o rapaz
cordialmente.
- Seja bem vindo, Doutor! – falou Dalva
com um sorriso.
Ritinha apenas sorriu.
- E aquele é o Toninho. – completou a
sogra.
Francisco acrescentou:
- Também conhecido como frouxo.
- Ô Chico! – disse Ângela em tom de
repreensão.
Toninho sorriu sem graça. Ângela
completou:
- Agora, vamos entrando que você deve
estar cansado e faminto.
- Pois bem! – disse Francisco -
Eduardo, não se preocupe com a bagagem. O Toninho vai levar suas coisas pro
quarto de Marília.
Enquanto todos entravam no casarão,
Toninho dirigia-se a caminhonete vermelha de Marília a fim de pegar a bagagem
do médico.
Chegara a noite. Na cozinha de uma
humilde construção, uma jovem mulher, de pele alva, lavava a louça. Seu esposo
Jorge – um moreno, por volta dos quarenta – entrou pela porta dos fundos.
- Ué mulher! Já jantou sem mim? –
disse.
- Cansei de te esperar, Jorge! –
justificou-se a mulher - Todo dia é a mesma coisa!
- Aí, aí, mulher, não vai começar com
esse sermão de novo.
Sua esposa pegou a colher de pau, que
acabara de enxaguar, e apontou para Jorge, dizendo:
- Você prefere ficar se entupindo de
cachaça com aqueles seus amigos a estar comigo. Vocês homens são todos iguais.
Jorge agarrou a mulher pela cintura e
tentou beijá-la.
- Vem cá, meu amor. Me dá um beijinho.
E a esposa, afastando Jorge de si:
- Me larga, homem! Em vez de gastar
dinheiro com cachaça, devia comprar o leite das crianças.
- Caramba, mulher! – irritou-se - Você
é uma chata!
- Não grita, homem! Vai acordar as
crianças! – advertiu.
- Quer saber? Eu vou lá pra fora fumar
um cigarro.
- Com esse cheiro de cachaça você vai
acabar explodindo.
Recostou-se numa das colunas de
madeira, que sustentavam o telhado da varanda de sua casa. Por fim, Jorge
acendeu um cigarro. Deu uma profunda tragada e soltou a fumaça lentamente,
tentando relaxar. Contemplava a noite enquanto os grilos cantavam. A seguir,
Jorge desceu o pequeno lance de degraus da varanda e começou a caminhar pela
propriedade, onde havia vegetação por todos os lados e a iluminação era
precária. Sua vizinhança era composta por algumas casas distantes. Enquanto
caminhava, um galho estalou no meio do mato.
- Tem alguém aí?! – perguntou Jorge.
Não obteve resposta. Então, deu uma
última tragada, jogou o cigarro no chão e pisou nele. Subitamente, um rato saiu
correndo do mato assustando-o.
- Mas que diabo! Maldito rato!
Respirando ofegante, sorriu aliviado.
Retomou sua caminhada. Novamente, grilos cantavam. Outro galho estalou no mato.
Os grilos silenciaram-se. Jorge volveu na direção do barulho. Pegou um pedaço
de madeira que estava no chão. Aproximou-se da vegetação.
- Agora te pego, seu rato safado.
Súbito. Algo enorme pulou da vegetação
sobre Jorge, que começou a gritar. Rapidamente, sua mulher surgiu na varanda. E
vendo o esposo sendo atacado pôs-se a gritar também.
- Jorge!!! Jorge!!! Aí, meu Deus!!!
Jorgeee!!!
Desesperada, a mulher abaixou-se
chorando, agarrando-se a uma das colunas de madeira, que sustentavam o telhado
da varanda.
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Fonte das fotos: arquivo pessoal.